O avanço das pesquisas e da tecnologia possibilitou a criação de grandes inovações no nosso planeta. E várias dessas inovações estão ligadas a um ramo da ciência: a biotecnologia. Vacinas, cosméticos, remédios, tratamentos de saúde, organismos transgênicos, manipulação genética, todos são aplicações da biotecnologia no nosso dia-a-dia. Obviamente, existem muitas controvérsias a respeito da biotecnologia e, no artigo de hoje, vamos analisar um desses pontos: as patentes biotecnológicas.
Esse é um tema bastante complexo, que ocuparia facilmente as páginas de um livro inteiro. Entretanto, a minha pretensão é apenas introduzir o tema e explicar o básico a respeito das patentes biotecnológicas. Ao final desse texto você vai entender exatamente do que se trata essas patentes e quais as principais polêmicas em relação a elas.
O que é biotecnologia?
A palavra biotecnologia é formada pelos termos gregos “bio”, que significa vida, “tecno”, que se refere à arte ou ciência e “logia”, que significa estudar. Ela é, então, uma ciência que aplica a biologia, ou seja, seres vivos, para desenvolver produtos úteis às pessoas.
Sim, a biotecnologia realiza pesquisas e utiliza organismos vivos para criar seus produtos e processos. Diversas técnicas podem ser aplicadas e vários tipos de organismos ou componentes de seres vivos são utilizados. Como exemplo temos os compostos de vegetais, partes de animais ou plantas, bactérias e outros microrganismos, informações genéticas, dentre muitos outros exemplos.
Você pode estar pensando que a biotecnologia envolve só aqueles experimentos complexos ou malucos com organismos transgênicos ou clonagem. Porém, preciso te dizer que você está enganado. A biotecnologia está presente em processos bem mais simples do nosso dia-a-dia como assar um pão. Sim, assar um pão é um processo biotecnológico pois usamos fermento biológico, que é um organismo vivo, que irá sofrer alterações e permitirá a fermentação e crescimento da massa do pão.
Então, a biotecnologia está presente desde as aplicações mais básicas e simples até as mais complexas. Existem registros de utilização e manipulação de seres vivos desde os tempos mais remotos da história humana, mas considera-se que o marco inicial da biotecnologia ocorreu no século XIX, com o advento do estudo e a manipulação de microrganismos para fermentar alimentos.
Atualmente, a biotecnologia passou a envolver procedimentos mais complexos, como a genética molecular. Essa é o estudo das células vivas, seu metabolismo e reações químicas em geral. E a genética molecular permite o desenvolvimento de organismos transgênicos, produção de medicamentos e outros tipos de terapia e manipulação genética de diversos tipos de seres vivos, incluindo o ser humano. Assim, ela tem ampla aplicação em setores ligados à medicina, à farmácia, à indústria de cosméticos, à indústria alimentícia, à agricultura, à pecuária e ao meio ambiente.
A biotecnologia traz muitos benefícios à sociedade. Porém, também traz muita insegurança com relação a seus potenciais malefícios. Neste artigo aqui você pode se aprofundar sobre as principais questões éticas que a biotecnologia suscita. E, no artigo de hoje, vamos falar apenas sobre a questão das patentes biotecnológicas.
Entenda as patentes biotecnológicas
As patentes são um instituto da propriedade intelectual que conferem direitos de exclusividade a uma pessoa que criou uma invenção ou um modelo de utilidade, permitindo que ela explore economicamente a sua criação. Com o avanço da biotecnologia, as invenções que envolviam algum componente vivo passaram a ser patenteáveis.
Antes de mais nada, é preciso destacar que o progresso da biotecnologia possibilitou a criação e consolidação de um setor de desenvolvimento e inovação tecnológica muito promissor e com altíssimo potencial econômico. As invenções biotecnológicas têm aplicação em diversos setores e isso gera muito valor econômico. E, por isso, as patentes tem grande importância, pois protegem o criador dessas invenções e permite que ele consiga bastante lucro.
Surgimento das patentes biotecnológicas
O surgimento da discussão das patentes biotecnológicas ocorreu em 1980, com a paradigmática decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Diamond vs. Chakrabarty. O processo discutia a patenteabilidade da bactéria Pseudomonas genus que, ao ser modificada geneticamente, passou a ter a propriedade de degradar hidrocarbonetos, sendo útil na recuperação de águas nos casos de derramamento de petróleo.
Num primeiro momento, o pedido de patente dessas bactérias foi negado pelo escritório de patentes americano. Porém, ao ser analisado pela Suprema Corte, o entendimento foi modificado, já que os juízes entenderam que a invenção era patenteável. Isso porque eles consideraram que a bactéria era totalmente diferente da bactéria encontrada na natureza e estava bastante modificada geneticamente. Então, ela não era um produto da natureza, mas algo criado artificialmente.
Nesta decisão o juiz Warren Burger disse a famosa frase:
“Anything under the sun that is made by man is eligible for patenting”
(Tudo abaixo do sol que é feito pelo homem é elegível para ser patenteável)
Esta frase influenciou bastante a concessão de patentes biotecnológicas não só nos Estados Unidos, mas em outros países do mundo.
O que pode ser patenteado?
Os elementos que podem ser patenteados são identificados como matéria patenteável. Cada país pode ter suas próprias diretrizes, sendo que existem alguns tratados internacionais que determinam em linhas gerais o que pode ser patenteável.
Em linhas gerais, a matéria patenteável em biotecnologia se refere a produtos ou processos que envolvem organismos vivos, materiais biológicos, plantas, DNA, proteínas, enzimas, dentre outros. Estes materiais devem preencher os requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Existem algumas limitações para patentear invenções biotecnológicas, especialmente se os inventos são contrários à moral e à ordem pública. Também é possível barrar o patenteamento de biotecnologia nos casos em que pode haver risco à saúde humana ou ao meio ambiente.
O patenteamento de biotecnologia gera bastante controvérsias. Um dos pontos mais relevantes é que a matéria-prima da biotecnologia são os seres vivos, que tem como maior característica a mutabilidade. Eles modificam a si próprios e transformam o ambiente à sua volta. Por isso, é difícil as vezes diferenciar o que é invenção e o que foi, na realidade, descoberto. É preciso identificar a modificação artificial nos organismos vivos para que sejam concedidas as patentes. Mas isso nem sempre é feito de forma eficiente.
Por isso, existem diversos tratados, leis e resoluções que tratam sobre o patenteamento de biotecnologia. Inclusive, o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) lançou recentemente algumas diretrizes para o patenteamento de biotecnologia. O que se percebe, de fato, é que ainda não há um entendimento uniforme sobre o que pode ser patenteável e as controvérsias jurídicas e éticas sobre as patentes biotecnológicas são bem complexas.
Desafios e incertezas do patenteamento de biotecnologia
O patenteamento de tecnologia trouxe uma realidade desafiadora: muitos pedidos a serem processados, dificuldade de verificar os requisitos de patenteabilidade, queda no padrão de qualidade no exame de patentes e disputas judiciais milionárias. O cenário é de incertezas e desafios.
Invenção X descoberta
Um dos principais pontos controversos é a diferença entre invenção e descoberta. Como se sabe, as patentes só podem ser concedidas a invenções, nunca a descobertas.
A invenção é algo novo criado pelo ser humano e se apresenta como a solução de um problema técnico e prático. Já a descoberta é a revelação de causas, propriedade e fenômenos que já existiam na natureza.
Parece fácil a distinção entre os dois, mas quando se trata de biotecnologia, diferenciar o que é descoberta e invenção é um tanto quanto obscuro. Isso gera diversas interpretações e muitas controvérsias judiciais.
É difícil determinar quando uma descoberta se torna uma invenção patenteável. Isso porque é necessário estabelecer até que ponto a atividade humana foi suficientemente inovadora a ponto de conceder a patente. E não só a atividade humana deve ser inovadora, mas a modificação no ser vivo deve ser, também, bastante significativa.
Isso é difícil de determinar no caso concreto e percebe-se, cada vez mais, que patentes estão sendo concedidas a descobertas e não a invenções. E isso é totalmente contrário aos fundamentos da propriedade intelectual e aos interesses sociais. Conforme Salvador Darío Bergel, o patenteamento de descobertas viabiliza a existência de monopólios prejudiciais ao desenvolvimento equilibrado da tecnologia.
As peculiaridades da biotecnologia geram desafios e incertezas para o sistema de patentes. Definir o que é produto da engenhosidade humana e o que é produto natural não está bem definido e o debate ainda está longe de finalizar.
Excesso de patentes e restrição ao conhecimento
A flexibilização entre o que é descoberta e invenção tem efeitos maléficos no ramo das pesquisas científicas. Existe uma grande competição neste setor, o que gera uma verdadeira corrida pelo patenteamento de biotecnologia. Alguns laboratórios, com a intenção de acelerar a aquisição de patentes, realizam pedidos para invenções em estágios iniciais, quando não há uma ainda uma aplicabilidade industrial bem definida.
Essas patentes, apesar de terem potencial de aplicação prática, são meramente estratégicas, a fim de se proteger o desenrolar das pesquisas, para que ninguém consiga desenvolver outra pesquisa parecida. E isso traz prejuízo ao desenvolvimento de outras pesquisas, porque, muitas vezes, o cientista vai precisar utilizar invenções patenteadas e então chegará em barreiras jurídicas e econômicas.
Como utilizar uma invenção patenteada sem o consentimento do titular? Impossível! Isso está gerando uma limitação do conhecimento e encarecimento de pesquisas científicas. E quem acaba pagando a conta? A sociedade, que deixa de usufruir os benefícios da inovação.
Patentes biotecnológicas: cuidados éticos
Alguns questionamentos podem surgir quanto ao patenteamento de biotecnologia. Os mais comuns são: o patenteamento significa a apropriação da vida? Podemos nos apropriar economicamente de um ser vivo? O patenteamento de genoma humano fere a dignidade?
Esses questionamentos são bastante complexos e ainda não possuem respostas concretas. Para quem tem curiosidade de saber mais sobre isso, eu escrevi uma dissertação inteira sobre esse tema e você pode acessar aqui.
Mesmo sem uma resposta aos questionamentos, é importante levar em consideração alguns cuidados éticos quanto ao patenteamento de biotecnologia. A primeira coisa a se levar em consideração é o equilíbrio entre os interesses do criador da patente e a sociedade.
Assim, as patentes:
- Não devem impedir o acesso à informação e ao conhecimento;
- Não devem proteger invenções triviais ou descobertas;
- Não devem infringir a ética profissional ou os princípios bioéticos;
- Não devem causar prejuízos à saúde pública, à saúde e à vida dos seres humanos, animais e vegetais e ao meio ambiente;
- Não devem destruir a biodiversidade;
- Não podem ser exercidas de forma abusiva;
- E não devem impedir novas pesquisas e experimentos.
Seguindo esses cuidados, o patenteamento de biotecnologia tem tudo para ser benéfico aos seres humanos. A inovação não deve ser impedida, principalmente se levarmos em conta que a biotecnologia é um dos setores mais promissores na área da saúde e na farmacêutica.
Quem aí não está esperando ansiosamente pela vacina contra o Covid-19, não é mesmo? O desenvolvimento dela não seria possível sem a biotecnologia.
Ainda assim, precisamos ter cuidado com as patentes biotecnológicas para que elas não sejam abusivas e não impeçam o progresso da inovação. Por isso, o debate desse assunto deve ser constante.
Referências
Nathalia Bastos do Vale Brito: Patrimônio genético humano, biodiversidade e propriedade intelectual: uma discussão acerca das patentes e a privatização do patrimônio da espécie. Acesse aqui.
Salvador Darío Bergel: Scientific research and patent law: ethical and juridical relationship between them. Acesse aqui.