Blog Nathalia Bastos do Vale

Blog sobre biodireito, propriedade intelectual e sustentabilidade

Você sabe o que é biopirataria? Entenda tudo

Cupuaçu. Castanha-do-pará. Cacau. Beberu. Andiroba. Copaíba. Espinheira-santa. Jaborandi. Essas são espécies típicas do Brasil. Espécies que possuem diversas propriedades e podem podem ser usadas como remédios, cosméticos ou alimentos. Além de serem espécies brasileiras, elas têm outro fator em comum: foram apropriadas indevidamente do nosso território e são comercializadas por empresas estrangeiras. Todas essas espécies foram alvo do que chamamos de biopirataria.

A biopirataria vem crescendo principalmente pelo interesses que as indústrias possuem sobre a biodiversidade e os conhecimentos das comunidades tradicionais. Isso porque os elementos da biodiversidade podem ter diversos utilidades. Plantas, ervas medicinais, flores e sementes podem ser utilizados para fazer cosméticos, remédios ou alimentos.

Por isso, grandes empresas, como as farmacêuticas, têm interesse econômico na exploração da biodiversidade. E essa exploração é feita principalmente dentro do território de países como Brasil, a Índia, Colômbia, Peru, dentre outros que são chamados megadiversos.

As empresas exploram o território desses países e extraem as mais diversas espécies e compostos para produzir produtos e patenteá-los. Entretanto, as patentes sobre essas espécies podem gerar situações abusivas e ilegais, gerando a chamada biopirataria.

Neste artigo vamos entender o que é biopirataria, porque é tão danosa e quais são as formas de combatê-la.

O que é biopirataria?

A biopirataria é a exploração ilegal de plantas e animais originários de um país ou a utilização indevida dos conhecimentos de comunidades tradicionais. Essa exploração é feita por pessoas ou empresas que exploram a biodiversidade de um território sem a autorização do país ou sem o consentimento das comunidades tradicionais.

Os países megadiversos são os maiores alvos dos biopiratas. Geralmente os países que sofrem biopirataria, como o Brasil, são países menos desenvolvidos e que não têm tecnologia suficiente para explorar seus próprios recursos naturais. Por outro lado, os países que praticam a biopirataria são países desenvolvidos, tecnológicos, mas pobres em biodiversidade.

O grande problema da biopirataria é que as riquezas biológicas são tiradas de um território pobre sem o seu conhecimento. E vão gerar riquezas em outro território, mais rico e desenvolvido. E, muitas vezes, as espécies retiradas ilegalmente de um território vão voltar para lá como produtos, remédios ou cosméticos caros. Isso perpetua o ciclo de dependência econômica dos países menos desenvolvidos.

Vamos pensar numa situação hipotética para ilustrar:

A empresa farmacêutica “Medicine”, americana, envia cientistas para a Amazônia, para explorar as diversas espécies que existem lá. Os cientistas exploram o território e entram em contato com as comunidades locais. Depois de um tempo, percebem que uma das plantas utilizadas pelas comunidades locais tem um potencial muito grande de curar uma doença de pele.

Essa planta é levada à sede da empresa nos EUA, sem a autorização do Brasil. Em sua sede, a empresa faz testes e desenvolve um remédio, que é patenteado logo em seguida. Por ter sido patenteado, somente essa empresa pode comercializar o remédio e no preço que ela deseja. O remédio passa a ser comercializado no Brasil por um preço muito caro e inacessível.

Veja a contradição: o Brasil, rico na planta medicinal, não pode desenvolver o mesmo remédio por ele ser patenteado e acaba ficando dependente dessa empresa estrangeira. Além disso, não consegue explorar economicamente o seu potencial.

Essa situação ocorre frequentemente e Vandana Shiva, uma ativista indiana que combate a biopirataria de forma ferrenha, explica:

Se a biopirataria não for desafiada e impedida, as sociedades do Terceiro Mundo terão de comprar, a custos elevados, as suas sementes e os seus medicamentos aos concessionários globais da biotecnologia e da indústria farmacêutica, o que as empurrará ainda mais para o endividamento e para a pobreza

Vandana Shiva

Biodiversidade e conhecimentos tradicionais: alvos da biopirataria

As plantas, animais, ervas e sementes são os grandes alvos dos biopiratas. Estas pessoas retiram amostras de espécies do território de um país de forma ilegal, muitas vezes por meio de contrabando. Após a retirada, eles levam as amostras para o seu país de origem para fazer pesquisas e gerar novos produtos.

Existe, também, outra forma de biopirataria, a que utiliza conhecimentos tradicionais. Esses são o conjunto de conhecimentos, crenças, práticas e tradições das comunidades tradicionais de certos países, como as indígenas por exemplo. Os conhecimentos tradicionais envolvem rituais, mitos e narrativas. Esses conhecimentos estão muito vinculados ao território e à natureza. Isso porque as comunidades tradicionais conhecem a fundo o ambiente em que habitam, utilizando seus elementos de diversas formas.

Por conhecerem o ambiente e as propriedades das plantas, ervas e sementes, as comunidades tradicionais possuem um conhecimento muito rico e valioso. E isso desperta o interesse dos biopiratas, que querem aprender as formas de uso e as propriedades de espécies exóticas e diferentes.

Os biopiratas tem formas específicas de agir. Eles fingem que são turistas, missionários ou religiosos para entrar em contato com as comunidades tradicionais e extrair o conhecimento delas sem que elas percebam. Ou seja, sem que elas forneçam o consentimento para o uso do seu conhecimento.

O conhecimento extraído ilegalmente é utilizado como base em pesquisas e desenvolvimento de produtos. Estima-se que 75% dos princípios ativos isolados de plantas utilizadas pela medicina foram identificados por meio dos conhecimentos tradicionais.  

Depois dessas práticas ilegais, os biopiratas ainda requerem as patentes sobre os produtos que desenvolvem com a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais coletados. As patentes acabam virando um instrumento que “torna legítima” a biopirataria.

Infelizmente, o sistema de propriedade intelectual internacional não protege a biodiversidade e nem os conhecimentos tradicionais de forma efetiva. Quando um pedido de patente é analisado, eles não verificam a origem do composto utilizado, se esse composto foi obtido de forma legal ou não, se foi ou não utilizados conhecimentos tradicionais nas pesquisas. Por isso, o combate à biopirataria depende muito de uma mudança no sistema de patentes.

Quais são os danos que a biopirataria pode causar?

A biopirataria pode gerar principalmente danos ambientais e econômicos. Podemos citar como exemplo:

  • Perda da biodiversidade causada pela exploração desenfreada e ilegal de espécies;
  • Desequilíbrio ecológico;
  • Prejuízos econômicos, causados pela dependência financeira que os países mais pobres podem ter;
  • Impossibilidade de explorar economicamente as riquezas naturais, que acabam sendo patenteadas por países desenvolvidos;
  • Desvalorização da pesquisa nacional;
  • Desvalorização dos conhecimentos tradicionais.

Esses são problemas graves que afetam negativamente o processo de desenvolvimento sustentável de vários países.

Casos de biopirataria no Brasil

A biopirataria ocorre no mundo inteiro e diversos casos são relatados. Aqui, falarei um pouco sobre alguns casos que ocorreram no Brasil.  

Caso beberu

Beberu é uma espécie de planta encontrada na Amazônia. Os índios Wapichana utilizam a noz do beberu como medicamento para estancar hemorragias, evitar gravidez, aborto e tratamento de infecções.

Essas propriedades chamaram a atenção de um pesquisador inglês, que morou em Roraima junto à população tradicional e começou a pesquisar as propriedades de tal espécie.

Ele enganou a população com a promessa de que os recompensaria com remédios e ajuda financeira, o que nunca ocorreu. A população tradicional descobriu que a noz de beberu estava registrada sob patente do Escritório de Patentes da Europa e nos Estados Unidos, o que criou uma mobilização para lutar pela rescisão das patentes e por indenização.

Caso Novartis

Esse caso envolveu a Bioamazônia, Associação Brasileira para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia, e a empresa suíça Novartis. Essas entidades celebraram um acordo de cooperação, permitindo que a Novartis pudesse acessar e usar elementos da biodiversidade na Amazônia.

Era permitida a coleta, a identificação, a classificação e o envio de espécies à Suíça. Além disso, a empresa poderia usar e vender os produtos originados pela exploração e registrar patentes. A Bioamazônia receberia apenas 1% dos royalties dos produtos.   

O contrato possuía muitas irregularidades. Não previa a repartição de benefícios para o Brasil e nem para as comunidades locais. Isso levou a uma reação do governo e da sociedade e, por pressão, a Novartis se retirou do contrato. Essa situação deu origem à primeira legislação brasileira de proteção à biodiversidade e ao patrimônio genético, a MP nº 2.186/2001.

Caso The body shop

A The Body Shop é uma empresa inglesa que realizou um contrato com os índios Kayapós, no Brasil. O acordo era sobre a compra de óleo de castanhas para produzir os seus cosméticos. A empresa era a única compradora, portanto ela estabelecia o preço e a quantidade de óleo comprada.

Além disso, a empresa utilizou as imagens dos Kayapós em suas propagandas publicitárias, para passar uma imagem de sustentabilidade. Entretanto, nenhum pagamento pelos direitos de imagens dos Kayapós foi realizado.

A empresa faturou milhões e a contraprestação aos Kayapós foi ínfima. Esse contrato desrespeitou a legislação vigente no Brasil.

Caso cupuaçu

O cupuaçu é uma fruta brasileira que faz parte da alimentação de várias comunidades tradicionais. Em 2001, foi descoberto que a empresa japonesa Asahi Foods Corporation possuía uma patente sobre o cupuaçu.

Essa patente era sobre o processo de fabricação do cupulate, o chocolate extraído do cupuaçu. Essa empresa também registrou uma marca sobre o nome cupuaçu, que tem origem indígena. E, por conta disso, ela estava multando quem utilizasse o nome cupuaçu em embalagens de produtos.

As autoridades brasileiras, assim como ONGS tomaram medidas em âmbito internacional para cancelar a patente e o registro de marca. Em 2004 a patente foi cancelada pelo escritório japonês de patentes.

Combate à biopirataria

O combate à biopirataria ainda é muito difícil. Faltam leis mais rigorosas, punições mais severas e fiscalização eficiente.

Em âmbito internacional, existem dois tratados que buscam valorizar a biodiversidade, reforçar a proteção dos conhecimentos tradicionais e combater a biopirataria.

O primeiro deles é a Convenção sobre Diversidade Biológica, de 1992. Essa convenção reafirmou os direitos dos países sobre a sua biodiversidade. Ela estabelece que cada país deve criar leis para autorizar a exploração de seus recursos naturais. Além disso, cria regras para que os países que realizam pesquisa no território de outro dividam os benefícios econômicos que receberem com o desenvolvimento de produtos e patentes, por exemplo. A Convenção é um instrumento de combate à degradação da biodiversidade e de incentivo ao desenvolvimento sustentável.

Posteriormente, surgiu o Protocolo de Nagoya, de 2009, que tem como principal objetivo o combate à biopirataria. Esse protocolo estabelece algumas regras mínimas de proteção aos conhecimentos tradicionais e à biodiversidade. As suas bases principais são:

  • Consentimento prévio informado – as comunidades tradicionais precisam consentir no uso dos seus conhecimentos;
  • Termos mutuamente acordados – se for do interesse do país e das comunidades, os termos de exploração da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais devem ser acordados de forma mútua, atendendo os interesses de ambas as partes;
  • Acesso e repartição de benefícios – se uma empresa explora a biodiversidade de um país e desenvolve um produto, os ganhos econômicos precisam ser repartidos entre ambas as partes.

Essas normas internacionais são apenas diretivas, cabendo a cada país criar as suas próprias leis específicas. O Brasil possui a Lei de Acesso ao Patrimônio Genético, Lei nº 13.123/2015 e o Decreto nº 8.772/2016. Essas leis contêm regras para a proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais. Elas estabelecem a forma como deve ocorrer o acesso estrangeiro aos nossos recursos naturais e também estabelece punições para aqueles que violam as regras.

Entretanto, as legislações não serão suficientes se não existe uma fiscalização efetiva. O combate à biopirataria depende da fiscalização e da imposição de multas e penalidades. Ainda falta muito para esse combate se tornar mais efetivo. Muitos países ainda não possuem legislações específicas sobre o tema.

Dessa forma, é muito importante que a população, principalmente as comunidades locais, tenham conhecimento dos perigos da biopirataria e possam denunciar essas práticas ilegais. O trabalho de ONGs e ativistas também contribui bastante para a denúncia dessas práticas e para fazer pressão nas autoridades.

Referências

A proteção da propriedade intelectual e a biopirataria do patrimônio genético amazônico à luz de diplomas internacionais – Helano Márcio Vieira Rangel. Artigo – leia aqui.

Biodiversidade, direitos de propriedade intelectual e globalização – Vandana Shiva. Capítulo de livro.

Biopirataria e conhecimentos tradicionais: as faces do biocolonialismo e sua regulação – Magno Federici Gomes e José Adércio Leite Sampaio. Artigo – leia aqui.

Contratos de bioprospecção e propriedade intelectual: uma Análise das medidas alternativas no sistema de patentes para Otimizar a proteção da biodiversidade – Nathalia Bastos do Vale Brito e Sébastien Kiwonghi Bizawu. Artigo – leia aqui.

Estado da técnica e conhecimentos tradicionais: uma abordagem da propriedade intelectual e a necessária discussão sobre a ecologia dos saberes – Nathalia Bastos do Vale Brito. Capítulo de livro (adquira aqui).

Liberdade de pesquisa e proteção da propriedade intelectual: biodireito e bioética ambiental como formas de tutela do patrimônio genético nacional – Bruno Torquato de Oliveira Naves e Carlos Frederico Saraiva de Vasconcelos. Capítulo de livro.


Nathalia Bastos do Vale

Olá, eu sou a Nathalia, advogada e mestre em Direito Ambiental. Sou apaixonada por direito, sustentabilidade, tecnologia e design. Neste blog pessoal você encontra conteúdos aprofundados e didáticos sobre tudo que envolve o Direito e a inovação.

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