Blog Nathalia Bastos do Vale

Blog sobre biodireito, propriedade intelectual e sustentabilidade

A quebra das patentes farmacêuticas e o direito à saúde

Vamos pensar um pouco na situação atual em que vivemos. Estamos no meio de uma pandemia, a do Covid-19. A vida de todos nós foi afetada drasticamente, alguns mais do que os outros. Mais de 100 mil vidas foram perdidas só no Brasil. O maior desejo que temos é que esse “pesadelo” passe. Ansiamos cada dia mais por uma cura, por uma vacina. Vemos notícias todos os dias para ver em qual estágio as vacinas já estão, se em breve as teremos disponíveis. Agora imaginem que uma vacina seja de fato produzida por um laboratório hoje e patenteada amanhã. Isso significa que ninguém mais poderá produzi-la, somente o laboratório titular da patente. Esse titular da patente não tem concorrência, ele pode colocar um preço alto para ter um lucro gigantesco e cobrir os gastos que teve com as pesquisas e desenvolvimento dos medicamentos. E se a vacina não aparecer de graça? E se ela for cara demais? O que vamos fazer? Temos somente que aceitar isso?

Bem, esse é um cenário possível de acontecer, infelizmente. E, de fato, acontece diariamente com diversos medicamentos que usamos frequentemente. Uma das maiores queixas que temos atualmente é o difícil acesso das pessoas a medicamentos e tratamentos de saúde. Eles são muito caros e as vezes impossível de serem custeados por certas pessoas. O acesso a saúde as vezes pode ser dificultado por conta da existência das patentes farmacêuticas.

Por que, então existem patentes farmacêuticas? Elas são do interesse de quem? E se podem constituir em ameaça para a saúde pública, existe alguma maneira de “quebrá-las”?

O artigo de hoje tem como objetivo responder essas e outras questões. Vamos analisar a importância das patentes farmacêuticas e também vamos falar das licenças compulsórias (o nome correto para a “quebra de patente”). E, além disso, vamos avaliar a questão do Covid-19 e se corremos ou não o risco de não ter acesso às vacinas ou potenciais curas do Covid-19. Então comecemos…

Patentes farmacêuticas

Patentes são uma modalidade de propriedade industrial e constituem-se em uma concessão que o Estado dá a uma pessoa que criou uma invenção nova e útil para a sociedade. Com essa patente, o inventor pode explorar exclusivamente o seu invento e pode impedir que outras pessoas o comercializem também (para saber mais sobre patentes, acesse o nosso texto aqui).

As patentes farmacêuticas são, então, aquelas relacionadas a algum medicamento ou tratamento de saúde novo. O laboratório farmacêutico desenvolve, por exemplo, uma vacina contra um tipo de doença, como o corona vírus. Essa vacina é nova e tem uma taxa de efetividade altíssima. Lógico que, para desenvolver essa vacina, o laboratório teve que investir muito dinheiro em pesquisas e é natural que eles queiram reaver esse dinheiro gasto e ainda ter lucro em cima disso.

O caminho mais adequado é pedir a patente, porque a patente vai garantir que nenhum outro laboratório possa desenvolver e comercializar aquela vacina sem a autorização do titular da patente. Em termos práticos, a vacina patenteada não terá concorrentes e, as pessoas que queiram comprá-la, vão ter que pagar o preço que o laboratório decidir colocar nela. E muitas vezes eles colocam preços abusivos. Isso se chama monopólio. As patentes farmacêuticas geram o monopólio da comercialização de remédios.

Por isso muitos medicamentos são extremamente caros e você não consegue comprar a versão “genérica”, que, em tese, é mais barata. Enquanto existem patentes não podem existir outras versões genéricas mais baratas, você tem que se contentar com o preço do medicamento original.

As patentes, entretanto, não duram a vida inteira, elas têm o prazo máximo de 20 anos no Brasil, após esse prazo qualquer laboratório pode produzir o medicamento patenteado, o que aumenta a concorrência e pode fazer com que os preços abaixem.

Existem dois fundamentos básicos que justificam as patentes farmacêuticas:

  1. Incentivar o inventor – ao garantir a exclusividade de exploração econômica, há uma recompensa para quem criou o invento e o incentiva a criar cada vez mais;
  2. Impulsionar novas pesquisas – a patente gera ganhos econômicos que podem incentivar outros laboratórios farmacêuticos a desenvolverem novos medicamentos e vacinas. Isso impulsiona a inovação.

Apesar desses fundamentos, a realidade é que muitas pessoas não têm acesso aos medicamentos pelo seu alto custo. As patentes farmacêuticas muitas vezes são vistas como empecilhos à garantia do direito à saúde para várias pessoas ao redor do mundo. A saúde é um direito humano e é essencial para a garantia de sustentabilidade no mundo. Assim, temos um conflito entre o direito à saúde e o direito dos laboratórios de serem reconhecidos e recompensados pelas inovações que trazem.

Essa questão é bastante polêmica e é alvo de diversas discussões. Inclusive, na OMC (Organização Mundial do Comércio), essa questão já foi discutida e resultou na Declaração de Doha em 2001. Nessa declaração, reconheceu-se a importância das patentes para o incentivo ao desenvolvimento de novos medicamentos. Ela também levou em consideração que essas mesmas patentes geram preocupação com relação aos efeitos dos monopólios sobre os preços dos medicamentos, que podem se tornar caros e inacessíveis.

E então, como fica? Pensemos em países que são assolados por epidemias como HIV por exemplo. Será que eles precisam ficar à mercê dessas patentes farmacêuticas? A garantia de um direito econômico é maior do que o direito à saúde de alguém? Será que não existe alguma forma de relativizar esse monopólio?

Na realidade existe, e é o que veremos no próximo tópico.

Licenças compulsórias

As licenças compulsórias são chamadas popularmente como “quebra de patente”. Por que elas têm esse nome popular? Porque, de fato, elas quebram a exclusividade que o detentor da patente tem, permitindo que outras pessoas desenvolvam e comercializem o mesmo produto patenteado. No caso das patentes farmacêuticas, a quebra garante que outros laboratórios comercializem os medicamentos, aumentando a concorrência e diminuindo os preços. Na prática, com a quebra de patente, as pessoas têm acesso a remédios genéricos e não precisam comprar o original que é mais caro.

Como funciona a licença compulsória? Como ela é aplicada?

 A licença compulsória nada mais é do que uma autorização dada pelo Estado para que outras pessoas possam desenvolver e explorar um objeto protegido por uma patente sem que seja necessário pedir autorização para o titular da patente. O Estado concede uma licença para que outras pessoas comercializem o produto e essa licença é compulsória porque independe de autorização do titular da patente.

O Estado não pode conceder licenças compulsórias quando ele bem entender. É preciso que estejam caracterizados alguns motivos justificadores. No Brasil, os motivos são:

  • fata de exploração da patente;
  • interesse público;
  • situações de emergência nacional e de extrema urgência;
  • remediar práticas de concorrência desleal; ou
  • falta de produção local.

Então, se caracterizados esses motivos, o Estado pode conceder licenças compulsórias, ou seja, quebrar uma patente. No caso de medicamentos, a licença compulsória pode ser vista como uma maneira de tentar equilibrar o mercado de medicamentos, garantindo uma maior acessibilidade a esses e promovendo o direito à saúde. Isso porque há mais concorrência e o preço dos medicamentos pode cair.  

No Brasil, tivemos um caso de licença compulsória em 2007. Trata-se “quebra de patente” dos medicamentos usados no combate ao HIV, o que contribuiu para democratizar o acesso e o tratamento dessa doença. Outros países como Canadá, Tailândia, Moçambique, Malásia e Indonésia também já licenciaram algumas patentes de medicamentos.

Apesar da importância da patente para o incentivo às pesquisas, a licença compulsória é um instrumento muito importante para garantir os direitos fundamentais das pessoas, especialmente a saúde.

Licenças compulsórias e o Covid-19

No dia 30 de janeiro de 2020, o Covid-19 foi considerado uma pandemia pela OMS (Organização Mundial da Saúde). A doença causada por esse vírus foi classificada como uma emergência de Saúde Pública com relevância internacional. Um dos principais objetivos internacionalmente compartilhados atualmente é o desenvolvimento da vacina para combater o Covid-19, assim como medicamentos mais eficazes para tratar os sintomas causados pela doença.

Uma das preocupações que podem existir é a proteção dessas vacinas ou medicamentos por meio de patentes. Isso porque, se houver o monopólio de comercialização, o acesso amplo e universal a essas vacinas e medicamentos será dificultado.

Antes mesmo de ter disponível a vacina, é preciso pontuar que existem muitas patentes relacionadas a itens usados no tratamento do Covid-19. Segundo o Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Avançada), estima-se que existem mais de 360 patentes vigentes ou pedidos pendentes no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) relacionados a equipamentos essenciais para o tratamento de pacientes com Covid-19 em estado grave. Esses pedidos estão associados a ventiladores pulmonares e métodos de diagnósticos de viroses respiratórias. Ao redor do mundo, esse número é ainda maior.

Por mais que se reconheça o papel das patentes para o estímulo à inovação, não pode se esquecer que muitos recursos públicos são investidos em pesquisa na área de saúde e na farmacêutica. E, em um cenário de pandemia, em que o direito à saúde da população é seriamente ameaçado, as patentes não deveriam se tornar limitadores de acesso a medicamentos e tratamentos.

Alguns países, como Israel, já concederam licenças compulsórias a medicamentos utilizados no tratamento do Covid-19. Por outro lado, tem-se disputas quanto ao patenteamento de medicamentos em outros países, inclusive no Brasil (para ler mais, clique aqui).

Em casos como o que estamos vivendo atualmente, de emergência internacional, o direito à saúde da população se torna mais relevante. É preciso buscar evitar disputas a respeito de direitos intelectuais para que não se atrapalhe o desenvolvimento de novas tecnologias capazes de combater o vírus.

E, nesse sentido, uma das medidas que devem ser tomadas com relação ao Covid-19 é o eventual licenciamento compulsório das patentes farmacêuticas relacionadas ao vírus, para evitar que somente aqueles que possuam alto poder aquisitivo tenham acesso ao tratamento e à cura. Alguns países já estão adotando em sua legislação mecanismos para facilitar o licenciamento compulsório de patentes relacionadas ao combate ao Covid-19, como o Canadá, Alemanha e Equador e Chile, por exemplo.

No Brasil, a legislação (Lei de Propriedade Industrial) já permite o licenciamento compulsório de patentes no caso de emergência nacional. Mas é necessário ato do Poder Público para que isso ocorra, o que pode ser demorado. Foram criados alguns projetos de lei este ano na tentativa de acelerar o processo de licenciamento compulsório, além de dispor sobre medidas que possam auxiliar no combate ao Covid-19. Esses projetos ainda estão em discussão.

A pandemia demanda uma atuação global para solucionar os problemas. Os países afetados precisam tomar atitudes mais eficazes. As licenças compulsórias são apenas uma das formas que pode auxiliar no acesso aos medicamentos pela população, mas ela por si só não é capaz de resolver todos os problemas causados pela pandemia. É necessária uma postura mais ativa dos Estados, com incentivo à pesquisa, investimentos em saúde, conscientização da população e amparo à população que se encontra atualmente sem renda.

E, enquanto isso no Brasil, infelizmente, algumas coisas estão ainda só no papel, ou nem mesmo isso…

Nathalia Bastos do Vale

Olá, eu sou a Nathalia, advogada e mestre em Direito Ambiental. Sou apaixonada por direito, sustentabilidade, tecnologia e design. Neste blog pessoal você encontra conteúdos aprofundados e didáticos sobre tudo que envolve o Direito e a inovação.

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